Ontem à noite, fiquei olhando essa foto e pensando que momentos, gestos não se congelam como uma foto, mas podem às vezes ser reconstruídos.
Meu pai começou a perder a audição cedo (por conta da aviação), a comunicação com ele não era uma coisa óbvia, seja pela surdez crescente ou pela dificuldade de compreensão mútua. Meu tom de voz sempre foi bem baixo. Fala alto, fala pra fora... Confesso que nunca consegui alcançar esse tom audível para ele.
Numa virada de ano, minha mãe morreu num acidente de carro, ela e meu pai estavam indo passar o ano novo no Rio de Janeiro. Foi a minha primeira grande perda, eu tinha 14 anos. De repente, nós ficamos sem a ponte, o elo e tudo ficou bem difícil e triste.
Bastante autoritário, crítico, duro, sim, por anos a convivência com meu pai foi bem complicada. Tinha um abismo, distância afetiva mesmo... Lá pelas tantas, me apaixono, vou morar na periferia, ser gauche na vida. Ele ficou sabendo na manhã em que eu já estava de mudança.
Veio então o rompimento... Nos encontramos por acaso tempos depois na casa da minha avó, pessoa iluminada, que via o mundo por uma perspectiva muito própria. Ela tinha uma compreensão, um respeito pelas escolhas individuais (todas) admirável! Você está feliz? É isso que importa! Estamos na sala, silêncio meu e dele, ela solta um comentário maroto. A sua filha ficou mais bonita depois que casou, não? Daquele dia em diante, ele desarmou, aceitou que eu estava com alguém, que eu morava longe, muito longe do que ele imaginava e queria.
Há uns bons anos, ele teve a grande boa sorte de encontrar uma pessoa especialíssima e a boa sorte foi minha também! A Betania entrou em nossas vidas e conquistou todos nós. Desde a primeira vez que nos falamos por telefone, voz doce e riso fácil (como o meu), nos gostamos de imediato (desde muito, é uma amiga queridíssima com quem divido meus tantos desassossegos). Ela fez o impensável, conseguiu nos tornar de novo uma família. Não uma família perfeita, longe disso, mas uma familinha...
Então, os nossos afetos foram se conciliando, nos aproximamos de mansinho, pai e filha. Fomos reconstruindo, desfazendo os nós... Ele ainda continua duro, talvez menos crítico, autoritário, mas nos permitimos a afetos, pacificamos.
Fui ontem ao sítio, onde ele e a Betania moram há alguns anos. Fui vê-los nesse domingo de dia dos pais. Fui de mãos vazias, o comandante é avesso a presentes em qualquer data (aprendi a não presenteá-lo depois que ele se desfez das várias tentativas minhas...). A tarde foi ensolarada e deliciosa, fiz folia com os cachorros, com os gatos, subi na escada para pegar laranja no pé, couve, coentro, salsinha... Vou lá sempre que posso e é muito bom, volto feliz!
Ultimamente, toda vez que me despeço do meu pai, abraço forte, dou beijos, abraço de novo, recebo de volta, acabo ficando mais um tantinho, despeço, beijo, abraço...
Não sei por quanto tempo ele ainda vai ficar por aqui, ele anda bem cansado, cansado mesmo. Sei que está se preparando para seu último voo.
Do meu lado, tenho também me esforçado para deixá-lo ir e estar preparada para isso, pois é como tem que ser.