O Pedro, meu filho, mandou uma mensagem à tarde com um link sobre uma homenagem que a Coordenação da Pastoral Carcerária quer fazer ao padre Chico, publiquei o post na hora. Mas quem é o padre Chico?
O padre Chico se tornou vigário da igreja da Brasillândia pouco tempo depois que eu e o Elcio nos mudamos para uma rua bem próxima da igreja. Tivemos a grande boa sorte de conhecê-lo numa circunstância infelizmente muito ruim. Recorremos a ele para nos ajudar a denunciar o assassinato de um 'suspeito' por um policial à paisana na nossa rua, a história é longa e é outra história...
O que aconteceu é que depois disso, nos tornamos muito próximos. Nós, um casal bem jovem, ateus, começamos a fazer muitas coisas com ele e a comunidade... e no espaço da igreja (que tinha a única praça na região central da Brasilândia, hoje ela está cercada por grades).
Uma noite, padre Chico estava em nossa casa e a conversa já ia longe regada a canecas de café e cigarros. Lá pelas tantas, o Elcio propõe organizarmos uma festa de aniversário da Brasilândia.
A ideia era envolver muita gente. A festa aconteceu... Uma missa campal? Vamos reunir os representantes das diversas religiões, evangélicos (as várias correntes), umbanda, candomblé ... Mas temos que falar sobre melhorias na região, toca a juntar mais gente, chamar representantes e lideranças dos partidos (todos), identificar as prioridades da região, e lá vai o pessoal pra rua fazer pesquisa de casa em casa. Quem vai no IBGE para pesquisar o perfil dos moradores da Brasilândia? Na época, não tinha internet... daí descobrem que é o bairro de maior população negra de São Paulo e com o maior índice de mortes de jovens. O que se faz com tudo isso? Vamos discutir violência policial?
Bom, a festa foi muito legal! Frutificou. Era o que queríamos. Dali saíram vários movimentos e grupos, o consciência negra, sem moradia, pouco depois, o da luta antimanicomial e por aí afora. Enfim, deu samba...
Foi com o padre Chico que entrei pela primeira vez no Carandiru. Ele já estava se desligando da igreja da Brasilândia para se dedicar à questão carcerária.
O padre Chico não está mais por aqui, o Elcio também não, pessoas mais que admiráveis que se esforçaram muito para que esse mundo se tornasse melhor... e que é bom lembrar de vez em quando.
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Segue um trecho de uma matéria (Caldeirão do inferno), do Marcos Faerman, que descreve um pouco o trabalho do padre Chico na Pastoral Carcerária.
Foi publicada na edição nº 320 de "Problemas Brasileiros", de março/abril de 1997.
"A Igreja Católica, por meio da Pastoral Carcerária, quase numa atividade clandestina de maquis, conseguiu que alguns de seus militantes passassem a fazer parte do universo do cárcere, na Casa de Detenção, alguns como guardas penitenciários. Esses homens se aplicam em ver o que puderem ver, escrevem diários terríveis sobre o que acontece nos subterrâneos do cárcere, com minúcias que lembram Recordações da casa dos mortos, de Dostoiévski, ou certos relatos de Soljenítsin sobre as prisões geladas da antiga União Soviética. Ou os textos de Elie Wiesel e Jorge Semprún sobre os campos de concentração, tão representativos deste infeliz século.
Pois bem, um homem da Igreja, que, há dez anos, entregou sua vida a frequentar penitenciárias e cadeias, além de reuniões no mundo todo, esse infatigável padre Francisco Reardon – conhecido como padre Chico e nada mais –, depois de uma passagem por Londres foi conhecer o campo de concentração de Auschwitz, na Polônia. O padre Chico diz que teve em Auschwitz uma sensação muito estranha de déjà vu. Era como um sonho ou um delírio, porque o monumento patrimonial da vergonha humana lhe evocava uma coisa já vista e vivida...
"As celas de castigo (do Carandiru) me fazem lembrar o que vi e senti em Auschwitz. Celas úmidas, mal iluminadas, com instalações sanitárias precárias, com ou sem água encanada, com o espaço da grade da janela fechado por uma chapa inteiriça de aço com pequenos furos para ventilação. Não há móvel algum e dorme-se na prata (no chão), muitas vezes sem cobertores." (O padre Chico trouxe de Auschwitz uma pedra – que deu de presente a dom Paulo Evaristo Arns, seu amigo.)
Graças às táticas e estratégia dos maquis da Igreja infiltrados em territórios agrestes como o Carandiru, os escaninhos mais sinistros dos prédios cinzentos que pesam sobre os olhos de quem passa de metrô por aqueles cantos de São Paulo tornaram-se conhecidos. "No passado", vai contando o padre Chico, "era mais difícil chegar até os presos feridos nas celas de castigo. Hoje as dificuldades são menores. Eles sabem que conhecemos todos os caminhos..." E, diz, "não é difícil encontrar presos machucados. Às vezes, os ferimentos são resultado de brigas e agressões entre os próprios presos; às vezes, são provocados por espancamento ou mesmo tortura operada pelos guardas ou carcereiros".
O padre Chico e seus amigos viram muitas vezes presos feridos, com marcas de canos de ferro nas costas e nas nádegas. Braços e pernas quebrados. Cabeças feridas, partidas. Eles viram tudo isso na Detenção de São Paulo, e em outros presídios, por quase todas as cadeias por onde andaram. Por isso, ele pensou no Carandiru quando estava em Auschwitz. Lembrou-se da sangueira toda do massacre dos 111 – muito mais mortos do que na famosa rebelião de Attica, nos Estados Unidos, que gerou tantos filmes nos EUA. "Nós vimos que eles tinham recebido um monte de tiros de metralhadora pelas costas", conta um agente penitenciário amigo do padre Chico, que diz que é ameaçado toda hora por colegas de emprego. E que sua "segurança" é feita pelos encarcerados.
Presos chegam aos montões ao Carandiru – às vezes cem, de uma vez, muitos deles primários; muitos porque roubaram pouco mais do que um farnel de comida; muitos que serão mandados para a "central de distribuição", que é o Pavilhão 2. Ali, muitos passam ou passavam pela experiência do "corredor polonês", mais ou menos como alguns detentos do Dops (Departamento de Ordem Política e Social), no tempo da ditadura. Quem passa por aquele túnel humano leva tapas, bofetões e pontapés inesquecíveis.
O padre Chico conheceu distritos policiais em que presos precisavam ser amarrados pelos colegas nas grades, para tentar dormir. Uma cena digna do martirológio de qualquer religião ou crença. Na verdade, num livro denominado Democracia, violência e direitos humanos, o atual secretário da Administração Penitenciária do Estado de São Paulo, João Benedito de Azevedo Marques, evoca um jurista do século 17, o célebre Beccaria, que fez retratos dos presídios de seu tempo que, segundo o secretário, não ficam a dever, em nada, aos nossos. E assim falou Beccaria, uma espécie de ícone dos juristas – em particular os penalistas: "Os dolorosos gemidos do fraco, sacrificado à ignorância cruel e aos opulentos covardes; os tormentos atrozes que a barbárie inflige por crimes sem provas ou por delitos quiméricos; o aspecto abominável dos xadrezes e das masmorras, cujo horror é ainda aumentado pelo suplício mais insuportável para os infelizes, a incerteza: tantos métodos odiosos espalhados por toda parte deveriam ter despertado a atenção dos filósofos, essa espécie de magistrados que dirigem as opiniões humanas."
(A foto é de uma entrevista com padre Chico publicada na Caros Amigos 25, de abril/99, crédito: Johnny)